Quando entra no ar a vinheta do Jornal Nacional, meu
coração vai apertando porque sei que lá vem. Não me refiro às quedas na bolsa,
à desvalorização do real ou às exigências do FMI, que tudo isso já vi.
Refiro-me às consequências de um mundo hostil, predatório e tremendamente
injusto, seja no Brasil, em Ruanda ou em qualquer lugar onde crianças passem
fome, senhoras durmam em calçadas tentando matricular seus filhos ou
aposentados morram em corredores de hospitais.
Cada vez mais difícil digerir a vida como ela é para a maioria.
As crianças que eu conheço estudam em escola particular,
compram livros, vão ao cinema, tomam lanches, são sócias de um clube, possuem
roupas coloridas, têm brinquedos, praticam esportes, vão à praia e no primeiro
sinal de doença, as mães telefonam para o médico e marcam consulta para o mesmo
dia, tendo a seu dispor ar-condicionado e competência. Tudo caro. É o preço de
poder ter um dia feliz entre duas noites de sono.
As Crianças que não conheço não têm nada disso, e quando
forem adultas terão menos ainda, porque até a inocência irão perder. Nunca
viram um hambúrguer, não sabem o gosto que a Fanta tem, dos picolés sentem o
gosto apenas do palito, não têm leite de manhã e não têm molho para o macarrão
que às vezes comem. Mascam chicletes usados, assim como seus pais fumam baganas
encontradas no chão. Um estômago vazio entre duas noites de sono.
Para a maior parte das pessoas, o espaço que existe entre
nascer e morrer não é ocupado. Não comem, e não comendo, não estudam, e não
estudando, não trabalham e não trabalhando, não existem. São fantasmas que não
conseguem libertar-se do próprio corpo. Nós enquanto isso, discutimos o novo
disco da Alanis Morrisete, aplaudimos a chegada do Xenical, vemos as fotos do
Morumbi Fashion, comemoramos o centenário de Hitchook, comentamos o lançamento
do novo Renault Clio, torcemos por Central do Brasil. Saímos para dançar,
provamos comida árabe, andamos de banana boat, fazemos terapia e regamos
girassóis. Fazemos interurbanos, jogamos no Toto Bola, compramos o batom que
seduz os moços e a espuma de barbear que seduz as moças. Bem alimentados,
instruídos em com um mínimo de saldo no banco, ocupam o espaço entre acordar e
adormecer.
Quem não come, não sabe ler e não tem medicamento não
ocupa espaço alguma. Flutua no vácuo, respira por aparelhos, ignora a própria
existência, só sabe que está vivo porque, de vez em quando, sofre um pouco mais
que o normal, porque o normal é sofrer bastante, mas não a ponto de não haver
diferença entre nascer ou morrer.
Fonte:
Marta Medeiros, fev/1999, p.162
Que posamos refletir com esse texto:
- As diferenças sociais;
- O sentido da vida;
- E a influência da representação social por meio da mídia
fortalecendo a visão pessimista dos seus telespectadores.
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