Eu não me lembro muito bem se tinha 13 ou 14 anos na primeira vez em que fiquei invisível. [...]. É muito provável que eu já tivesse ficado invisível muitas vezes antes, tenho certeza que sim. Quando a minha mãe e o meu pai discutiam, quando ele gritou que ela é que quis ter filho e agora não gosta de ficar com as crianças e só quer viajar, quando ela bebia e andava quase nua pela casa, quando o meu pai mudava a televisão de canal pouco antes do fim do filme que eu estava assistindo havia mais de uma hora, é claro que eu estava invisível, só que não percebia. [...] Acordei, era outra pessoa. E continuava invisível.
Meu irmão mais velho vai chegar no próximo fim de semana [...]. Ele vem com a namorada e vai dormir no meu quarto, eu vou dormir com a minha irmã, no chão do quarto dela. [Minha mãe e minha irmã] falaram todo o tempo, decidindo o que ia acontecer comigo, sem me ver. Comi frango com arroz e legumes e fui ao banheiro. Abri o armário dos remédios, peguei um remédio da minha mãe, frontal. Li a bula. “Componente ativo: alprazolam. Indicado no tratamento de estados de ansiedade. Seu mecanismo de ação é desconhecido.” Talvez fosse isso, ansiedade se cura com remédio. Não é recomendado a pacientes psicóticos. Os sintomas da ansiedade são: tensão, medo, aflição, agonia, intranquilidade, dificuldades de concentração, irritabilidade, insônia e ou hiperatividade. Os sintomas da ansiedade sou eu. Peguei o vidro e fui para o meu quarto. Tomei dois, devia ter pegado água, não é bom ter tomado remédio com fanta. Deitei e dormi.
"Frontal com fanta", de Jorge Furtado. in Tarja preta. Ed. Perspectiva, 2005.
Ao refletir a ironia, que transpassa da desconstrução do valor eufemístico da expressão “invisível” que contraditoriamente trazem a sensação de estar invisível, devida ao fato das pessoas ao seu redor, em diversos momentos, agirem como se ele não estivesse presente em sua própria vida.
Ela me perguntou quantas pessoas eu já vi morrer. Quantas pessoas você já viu morrer? Nenhuma, eu disse. Ela sorriu e disse eu vou ser a primeira. Eu disse vai. Ela disse boa sorte.
— Boa sorte.
Sobre a primeira vez! O primeiro amor, a primeira transa, o primeiro contato real com a morte. Mostra que sempre há a possibilidade de uma segunda chance.
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