Trecho de 21 DE MAIO do livro: Quarto de despejo - Diário de uma favelada.

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Passei uma noite horrível. Sonhei que eu residia numa casa residivel, tinha banheiro, cozinha, copa e até quarto de criada. Eu ia festejar o aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu ia comprar-lhe umas panelinhas que á muito ela vive pedindo. Porque eu estava em condições de comprar. Sentei na mesa para comer. A toalha era alva ao lirio. Eu comia bife, pão com manteiga, batata frita e salada. Quando fui pegar outro bife despertei. Que realidade amarga! 

Eu não residia na cidade. Estava na favela. Na lama, as margens do Tietê. E com 9 cruzeiros apenas.
Nao tenho açucar porque ontem eu saí e os meninos comeram o pouco que eu tinha. Quem deve dirigir é quem tem capacidade. Quem tem dó e amisade ao povo. Quem governa o nosso país é quem tem dinheiro, quem não sabe o que é fome, a dor, a aflição do pobre. Se a maioria revoltar-se, o que pode fazer a minoria? Eu estou ao lado do pobre, que é o braço. Braço desnutrido.

Precisamos livrar o paiz dos politicos açambarcadores.Eu ontem comi aquele macarrão do lixo com receio de morrer, porque em 1953 eu vendia ferro lá no Zinho. Havia um pretinho bonitinho. Ele ia vender ferro lá no Zinho. Ele era jovem e dizia que quem devia catar papel são os velhos. Um dia eu ia vender ferro quando parei na Avenida Bom Jardim. No Lixão, como é denominado o local. Os lixeiros haviam jogado carne no lixo. E ele escolhia uns pedaços. Disse-me:- Leva, Carolina. Dá pra comer.

Deu-me uns pedaços. Para não maguá-lo, aceitei. Procurei convencê-lo a não comer aquela carne. Para comer os pães duros ruidos pelos ratos. Ele disse-me que não. Que há dois dias não comia. Acendeu o fogo e assou a carne. A fome era tanta que ele não poude deixar assar a carne. Esquentou-a e comeu. Para não presenciar aquele quadro, saí pensando: faz de conta que eu não presenciei esta cena. Isto não pode ser real num paiz fertil igual ao meu. Revoltei contra o tal Serviço Social que diz ter sido criado para reajustar os desajustados, mas não toma conhecimento da existencia infausta dos marginais. 

Vendi os ferros no Zinho e voltei para o quintal de São Paulo, a favela. No outro dia encontraram o pretinho morto. Os dedos do seu pé abriram. O espaço era de vinte centimetros. Ele aumentou-se como se fosse de borracha. Os dedos do pé parecia leque. Não trazia documentos. Foi sepultado como um Zé qualquer. Ninguém procurou saber seu nome. Marginal não tem nome.

De quatro em quatro anos muda-se os politicos e não soluciona a fome que tem sua matriz na favela e as sucursaes nos lares dos operarios. Quando eu fui buscar agua vi uma infeliz caida perto da torneira porque ontem dormiu sem jantar. É que ela está desnutrida. Os medicos que nós temos na politica sabem disto.

Achei um cará no lixo, uma batata doce e uma batata solsa. Cheguei na favela os meus meninos estavam roendo um pedaço de pão duro. Pensei: para comer estes pães era preciso que eles tivessem dentes eletricos.

Não tinha gordura. Puis o cará e a batata. E agua. Assim que ferveu eu puis o macarrão que os meninos cataram no lixo. Os favelados estão aos poucos convencendo-se que para viver precisam imitar os corvos. Eu não vejo eficiencia no Serviço Social em relação ao favelado. Amanhã não vou ter pão. Vou cozinhar a batata doce.

Carolina Maria de Jesus, (1914–1977).

Hoje compartilho a reflexão “Quarto de despejo: Diário de uma favelada”, livro publicado em 1960, revela detalhes da miséria humana sob um ângulo pouco repercutido. Nessas páginas, escritas entre julho de 1955 e janeiro de 1960, Carolina desnuda a realidade invisibilizada de quem busca diariamente os recursos básicos para sobreviver e dá voz a uma narrativa excluída.


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